Os museus de Chico Xavier: rastros da circulação, rastros do imaginário

Por João Damasio, 2021.


Nos últimos anos, venho observando a circulação de imagens em uma diversidade de museus vinculados ao espiritismo. Essas iniciativas têm se intensificado com a midiatização e, por isso, se tornou tema de minha pesquisa de doutorado. Esta pesquisa está vinculada ao Laboratório de Circulação, Imagem e Midiatização (Lacim).

Neste mês de agosto de 2021, após efetivar um mapeamento que envolve mais de vinte museus, conclui o trabalho de campo com uma visita à região do triângulo mineiro, onde visitei a Casa de Memórias e Lembranças Chico Xavier e o Memorial Chico Xavier, em Uberaba; e o Memorial Eurípedes Barsanulfo, em Sacramento.

Esses museus nos contam que o espiritismo, fundado há 160 anos na França, criou raízes profundas no Brasil. As exposições reúnem aspectos que nos permitem compreender tanto as especificidades desses lugares, como produtores de ritos mediúnicos vinculados à assistência social pelos interiores do país, quanto a extensão desse imaginário quando se relaciona com referências tão longínquas para a herança brasileira do kardecismo como são as crenças do espiritualismo moderno, forjado nos Estados Unidos, atualmente mesclado aos movimentos de Nova Era.

Assim, se seguirmos as imagens que orbitam esses museus, poderemos compreender como os rastros da circulação são também rastros do imaginário. Vejamos alguns desses rastros, que ajudam a cavoucar a implicação de lógicas de midiatização mesmo nesses museus que pouco tem de cultura digital.

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Chico Xavier (1910-2002) certamente é o mais conhecido representante do espiritismo no Brasil. Todo seu trabalho social e mediúnico ocorreu em Uberaba. Na mesma cidade, aliás no mesmo bairro, há dois museus em sua homenagem - sem contar seu mausoléu, bustos, estátuas e centros espíritas que fundou.

O primeiro desses espaços é a Casa de Memórias e Lembranças Chico Xavier, um museu-casa aberto em 2002, logo após a morte do médium, com recursos privados de seu filho adotivo, Eurípedes Higino.

Quem chega ao local antes de 9h da manhã, como eu cheguei, pode receber o passe (prática mediúnica) em uma sala dentro do museu, antes de visitar as instalações. Voltei ao museu mais de uma vez e repeti o ritual. A entrada do museu é por uma livraria, onde o próprio Eurípedes recebe os visitantes, que somam mais de vinte mil por ano.

A casa foi mantida com seus cômodos originais e neles são expostas fotografias e pinturas, panfletos, cópias de psicografias, cópias de todo tipo de documento, imagens católicas e pertences de Chico (desde suas roupas e livros até perucas e dentaduras). Salvo a liberdade criativa das instalações museais, noto que, às vezes, as mesmas imagens se repetem e muitas outras se sobrepõem fisicamente no museu, fazendo um interessante paralelo com a proliferação das imagens nas redes sociais.

Fachada da Casa de Lembranças

Foto: João Damasio, 2021.

Multidão de imagens na casa de Chico Xavier

Foto: João Damasio, 2021.

É digno de nota que também a casa onde Chico Xavier morou na infância, em Pedro Leopoldo (MG), se tornou outro museu-casa em 2005 - a Casa de Chico Xavier.

Mas não são apenas os amigos do médium que criaram museus em seu nome. O município de Uberaba (MG) fundou em 2016 o Memorial Chico Xavier, cujo projeto museológico já sofreu diversas alterações. Inicialmente vinculado à religiosidade e à biografia do médium, agora trabalha com valores humanos universais inspirados nele (diálogo, solidariedade, respeito, amor), como consta em seu site recém-lançado.

Ainda que só tenha se concretizado em tempos de midiatização, a ideia de um museu espírita nessa região não é nova. Recentemente, foi descoberta a planta de um museu idealizado por Chico Xavier e desenhado por Oscar Niemeyer na década de 1960. O projeto não se concretizou, se não em sua feliz semelhança arquitetônica com o atual Memorial.


Planta da Exposição Espírita Permanente

Fonte: Memorial Chico Xavier, 2021.

Foto: João Damasio, 2021.

Fachada do Memorial Chico Xavier

Foto: Facebook @MemorialChicoXavier.

Casa de Lembranças expõe registro da época da construção da Exposição não concretizada

Fonte: Casa de Lembranças Chico Xavier, 2021.

Foto: João Damasio, 2021.

A documentação desse projeto foi descoberta em 2018 pelo pedreiro Lourencildo Gonçalves, enquanto trabalhava em um prédio da Comunhão Espírita Cristã, primeiro centro fundado por Chico Xavier em Uberaba. Atualmente, os documentos já estão no acervo do Memorial.

Seguindo o rastro da circulação, encontramos algo ainda mais profundo desse imaginário que, apesar de bastante enraizado nessa região, chegou a acionar as referências do espiritualismo moderno estadunidense, movimento que precedeu a codificação do espiritismo francês. Os documentos anexos à planta do museu de Chico Xavier, que se chamaria “Exposição Espírita Permanente”, revelam um projeto museológico a fim de imitar uma “Galeria de Arte Psíquica”, que existiu no Acampamento Espiritista de Chesterfield, em Indiana (EUA).

Um detalhe importante é que de fato a Exposição Espírita Permanente nunca aconteceu e não se sabe bem o motivo. E mesmo a galeria de arte estadunidense que lhe servia de referência foi fechada quando os médiuns do local disseram que suas pinturas mediúnicas eram falsas. De modo semelhante, pouco depois, na França, uma polêmica com a chamada fotografia de espíritos levou à prisão um dos principais representantes do espiritismo à época.

Venho me perguntando se não há aí um trauma das imagens na história do espiritismo, que se presentifica na constante fuga das imagens no seio da cultura espírita. Podemos notar que a Casa de Lembranças é de propriedade privada, desvinculada de instituições representativas do espiritismo. Higino comenta que não cederia a gestão a instituições espíritas, que poderiam alterar a visada pretendida do museu. Já o Memorial, gerido pelo município, será reinstalado em breve com uma expografia baseada em valores universais e não mais na religiosidade espírita, tendo em vista seu caráter público.

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Antes de Chico Xavier, a região do triângulo mineiro teve outro ancestral, cujas raízes vão ainda mais fundo no tempo e na disseminação do espiritismo no Brasil. Na cidade de Sacramento, católica desde o nome, Eurípedes Barsanulfo (1880-1918), pioneiro em uma pedagogia espírita inspirada em Pestalozzi, fundou o Colégio Allan Kardec, até hoje em funcionamento. O nome do filho adotivo de Chico, aliás, foi em sua homenagem.

Atualmente, desde os anos 1970, o Colégio abriga o Memorial Eurípedes Barsanulfo, com alguns de seus pertences e cartas. O pátio do Colégio também é objeto de visitação. No dia em que estive lá, notei que uma equipe da TV Minas, que estava produzindo uma reportagem sobre a educação neste Colégio (situação corriqueira), conversava naquele pátio, preterindo uma cantina e uma livraria que ficam logo na entrada. O pátio pode ser um patrimônio à parte, tendo em vista o que se diz em sua placa: “Nesse pátio, Eurípedes recebia os doentes e ministrava suas aulas junto à natureza”.


Pátio no Colégio Allan Kardec

Foto: João Damasio, 2021.

A presença e circulação de outros dois objetos, ainda deslocados da exposição, me chamaram a atenção. Um deles remete à circulação dos meios de transporte e outro à circulação digital. Nenhum desses objetos, especificamente, condensa o conceito de circulação. Mas os sentidos viabilizados por meios de transportes e suas reconfigurações com o acesso ao digital são relevantes como dinamizadores da circulação de sentidos.

Primeiro, vemos um pedaço de ferro cindido do trilho do trem, com inscrição do ano de 1886, doado ao Memorial Eurípedes Barsanulfo há um ano, mas que parece ainda sem lugar, isolado de toda coleção, no parapeito de uma janela. A que pode servir aquela peça tão material que testemunha a chegada do trem – e provavelmente do espiritismo – naquela cidade na época de infância de Barsanulfo?

O outro aspecto é a experimentação ainda incerta de um acervo digital, isto é, contendo a digitalização de uma parte específica do acervo físico: as cartas que Eurípedes recebia com clamores de doentes que não tinham acesso à medicina, e onde ele mesmo psicografava uma receita assinada pelo espírito Bezerra de Menezes.

Ali, o digital desponta pela necessidade de um suporte capaz de conservar as cartas que já contam um século de sobrevivência, acondicionadas e já não mais disponíveis para manipulação. Os recursos digitais não vêm em vão, nem se intrometem automaticamente nas culturas. Em certo sentido, é a circulação que aciona os meios de transporte e os recursos digitais.

Ferro doado ao Memorial Eurípedes Barsanulfo

Foto: João Damasio, 2021.

Carta digitalizada na secretaria do Colégio

Fonte: Memorial Eurípedes Barsanulfo

Foto: João Damasio, 2021.

Depois de passar alguns dias entre Uberaba e Sacramento, voltei de viagem com a sensação de que a região do triângulo mineiro contém de fato as raízes de uma cultura espírita brasileira, gestada no atendimento a necessidades sociais no interior do país, uma cultura popularmente vinculada a Chico Xavier e profundamente ligada ao trabalho de Eurípedes Barsanulfo. Os tensionamentos dessa realidade com os diversos referentes da história do espiritismo estão em pauta no movimento espírita.

Dentre os museus que constituem o corpus de minha pesquisa, esses três representam os que mais exigem a presencialidade para a experiência, o passe, o quarto da casa de Chico, o pátio de Eurípedes, impondo limites a uma midiatização de tudo, mas não sem que o imaginário deixe também rastros na circulação midiatizada, como vimos nas reportagens e sites linkados neste texto, e na própria viabilidade presente de circulação dessas imagens.