A iconicidade do imaginário espírita na midiatização - Entrevista com João Damasio da Silva Neto
Por Rodrigo Duarte, 2024.
A iconicidade do imaginário espírita na midiatização - Entrevista com João Damasio da Silva Neto
Por Rodrigo Duarte, 2024.
Como uma religião secular que evita a produção de ícones, sob o receio da idolatria, se desenvolve fortemente ligada à cultura escrita e, ao mesmo tempo, se inspira em um materialismo metodológico, preserva seus simbolismos, inscreve imagens em circulação e produz imaginários?
Existem, ao menos, 27 iniciativas de musealização do espiritismo no Brasil. Na verdade, o número pode ser muito maior que esse, mas este foi o circuito apresentado e investigado por João Damasio, em sua tese de doutorado. João não se balizou por registros oficiais, mas por práticas que indicavam ações de musealização, o que significa dizer que não necessariamente eram reconhecidas formalmente pelo campo museológico ou religioso.
Na tese “O CASO DOS MUSEUS ESPÍRITAS: Iconicidade do imaginário na midiatização”, João Damasio da Silva Neto investiga 27 iniciativas de musealização espírita no Brasil, através de visitações, entrevistas e coleta de fotografias e imagens. João Damásio é integrante do Lacim e concedeu entrevista sobre desafios e proposições que desenvolveu em sua pesquisa de doutorado.
***
João Damasio é graduado em jornalismo (Faculdade Araguaia), Mestre em Comunicação (UFG) e Doutor em Ciências da Comunicação (Unisinos). É membro do Laboratório de Circulação, Imagem e Midiatização (Lacim/Unisinos) e do Grupo de Pesquisa Narrativa, Cultura e Temporalidade (Narra/UFU). Integra também o comitê técnico e editorial do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais.
***
1 - João, para iniciar, poderia nos contar como foi a invenção do objeto de pesquisa trabalhado ao longo do doutorado?
Boa parte se deve à minha imersão nos temas da cultura espírita. Eu estava atento e o início do meu doutoramento, em 2018, coincidiu com o surgimento de alguns museus vinculados ao espiritismo. Então me engajei em inúmeros movimentos exploratórios: debates em grupos online, vivência e visitas em alguns grupos espíritas, bem como conversas mais ou menos estruturadas como entrevistas. Eu sou espírita, já tinha feito uma dissertação de mestrado tematizando essa religião, foi um movimento mais natural... havia algo de (auto)etnográfico na constituição desse objeto de pesquisa.
Mas também houve outro lado inesperado. Motivado pelo contato com os estudos da imagem, desenvolvidos pela professora Ana Paula da Rosa, minha orientadora, eu percebi essa “invenção” quando me atentei que as imagens constituíam um aspecto pouco compreendido e bastante problemático no imaginário espírita. E elas estavam necessariamente expostas nesses museus que me chamaram a atenção. O mais curioso foi quando o simples olhar para certas imagens foi me permitindo fazer novas perguntas sobre o que seria uma “cultura espírita”. Nos primeiros trechos da tese, eu conto sobre a observação de quatro episódios distintos de musealização do espiritismo, que me levaram para o mesmo objeto de pesquisa – a iconicidade do imaginário espírita na midiatização.
2 - “Museus espiritas como dispositivos de iconicidade” é o tema da parte 1 de seu trabalho. Sinteticamente, você indica que essa parte da tese busca responder “como as práticas museais espíritas inscrevem seus imaginários em circulação na midiatização”. De que maneira o acionamento da heurística de José Luiz Braga (BRAGA, 2018) sobre dispositivos interacionais colaborou para a compreensão sobre práticas museais (e seus efeitos no imaginário em circulação)?
Minha tese está dividida em duas partes, uma sobre os museus espíritas propriamente ditos e outra sobre as imagens que emergem deles. São duas partes porque elas se valem de diferentes heurísticas. Toda a primeira parte está ligada à abordagem do professor José Luiz Braga sobre dispositivos interacionais – “o dispositivo como resultado de estratégias” (Braga, 2018, p. 85), conforme derivou da filosofia foucaultiana.
O professor José Luiz Braga foi uma presença marcante em minha formação, tendo inclusive participado das minhas bancas de qualificação e defesa da tese. Em um de seus seminários, conectamos a percepção de que o museu surge no espiritismo justamente como um “resultado de estratégias” que, fui compreendendo depois, eram orientadas pela urgência social de elaborar um lugar para sua história e suas imagens em circulação. Por isso, meu foco nessa parte foi cartografar as práticas que dessem a ver esse dispositivo.
3 - Desde o início de sua tese você deixa explicito o desafio de estudar o imaginário no contexto teórico e empírico da midiatização. Que conflitos e costuras teóricas você encontrou e desenvolveu ao longo de sua tese? Além disso, de que maneira essa articulação colaborou para a proposição de que “a midiatização vem mobilizando uma espécie de virada icônica no espiritismo” (p. 6)?
A relação entre midiatização e imagens é um tanto evidente. Um dos modos de falar sobre a midiatização é dizer que estamos em uma “civilização da imagem” (De Carli, 2020). Mas, em nossa linha de pesquisa, a Escola da Unisinos, percebemos como a midiatização tem menos a ver com macro explicações sobre “a civilização” e está mais relacionada às construções cotidianas (Couldry e Hepp, 2020) e à complexificação processual de nosso modo de ser (Braga, 2006; Gomes, 2016). Nesse sentido, certamente ainda não sabemos muita coisa sobre as imagens contemporâneas.
Na linha da pesquisa, a professora Ana Paula da Rosa (2019) tem ressaltado a diferença e a conexão entre as imagens materiais e imateriais, chamadas por Hans Belting de imagens exógenas e endógenas. Para além desses entes imagéticos, externos e internos, há ainda a noção de imaginário, que frequentemente é reduzida às representações, mas, desde o trabalho seminal de Gilbert Durand (2002), precisa ser compreendida ao mesmo tempo como repertório de imagens e como dinamismo que nos faz imaginar – inclusive (sobretudo?) na midiatização.
Em minha tese, a percepção de que a midiatização gera uma virada icônica no espiritismo aponta justamente para as dinâmicas do imaginário espírita quando deste é solicitado um modo de ser icônico.
4 - Como as articulações entre as epistemologias da midiatização e do imaginário abrem frentes para novos programas de pesquisa? Que questões emergentes na sociedade você entende que podem ser enfrentadas a partir dessa articulação teórica?
Nós não temos entendido muita coisa no mundo, como as guerras atuais, evocando problemas que nos pareciam mais ou menos resolvidos. Quando olhávamos para o holocausto, a impressão era de que, se houvesse internet ou registros do que estava acontecendo naquela época, o restante do mundo interviria pelos judeus. Mas, agora, com a midiatização da guerra, estamos assistindo ao genocídio do povo palestino ao vivo. Precisamos saber como imaginar saídas e rever o que sabíamos, rever nosso imaginário.
São questões que retomam a preocupação de Walter Benjamin (2012) quando articulava a crítica da história material a uma ordem experiencial mais profunda. Aposto nessa perspectiva de atentar à historicidade das questões sociais, agora marcadas e redescritas pela midiatização, em relação às potências criativas, críticas e políticas que revelam nossos modos de existência, nosso cotidiano, mesmo em meio às injunções tecnológicas.
5 – Você conduz metodologicamente a pesquisa a partir de orientações sobre os estudos de caso midiatizados, abordagem essa desenvolvida na linha de pesquisa ‘Midiatização e Processos Sociais’, no PPGCOM da Unisinos, onde você estava vinculado à época do doutorado. Na sua tese você produz um “estudo de caso midiatizado baseado em casos múltiplos” (p. 66). Poderia nos contar sobre como foi o processo para chegar a essa configuração metodológica?
A ideia do estudo de caso é sempre privilegiar a empiria. Operacionalmente, eu estava lidando com 27 museus espíritas. Então, realizei de fato um estudo de casos múltiplos. Mas não adotei essa metodologia com as finalidades de comparação que geralmente caracterizam esse procedimento. Eu o fiz como um estudo de caso midiatizado (Weschenfelder, 2019), isto é, interessado no caso singular da emergência de museus espíritas como um fenômeno de complexificação da midiatização.
6 - Suas análises se dividem em dois momentos, sendo o primeiro uma “cartografia das práticas”, onde você buscou descrever “um conjunto de práticas sociais capazes de caracterizar o dispositivo em questão” (...) tendo como foco “práticas museais midiatizadas, isto é, aquelas que mobilizam marcas, gramáticas, operações e lógicas de midiatização no dispositivo museal” (p. 93).
Nesse sentido, como esse movimento cartográfico (que você define como experimental) contribuiu não só para o mapeamento, mas também para a própria compreensão sobre o que são práticas midiatizadas?
Eu diria que fazer uma cartografia das práticas é uma das formas de análise da circulação de sentidos. Na página 78 da tese, eu retomo alguns estudos de Eliseo Verón para sistematizar quatro objetos recorrentes na análise da circulação: as marcas discursivas das textualidades disponíveis, os fazeres que buscamos problematizar, as operações de sentido que caracterizam formas de agir e as lógicas mais amplas que estruturam as interações sociais. No primeiro nível, as marcas textuais nos levam à análise discursiva ou semiológica. No último nível, as lógicas macro nos levam à análise de sistemas sociais. E, no nível intermediário dos fazeres e operações, cabe a cartografia ou estratégias heurísticas que se atentem para as práticas, pois são elas que constituem um dispositivo.
A cartografia, como modo de representação de territórios, já parte do pressuposto de certa instabilidade, pois o território se modifica enquanto se tenta representá-lo. Isso fica ainda mais fluido quando falamos de práticas. E se complexifica quando estas são midiatizadas. Mas a ideia continua a mesma: representar os sentidos, sob certa escala de sensibilidade.
Em minha tese, propus uma cartografia das práticas como um trabalho essencialmente descritivo de possibilidades museológicas e de processos de musealização, que me permitiram perceber iniciativas dessa ordem em circulação. Em suma, foi importante para mim perceber que eu não entenderia os museus espíritas classificando-os dentro de categorias existentes na museologia ou na religião. As práticas em experimentação é que constituíam o que seria um museu no espiritismo.
Então, a proposição de uma cartografia “das práticas” veio como encaminhamento para a pergunta que eu tinha que responder (o que é esse dispositivo e como esses museus inscrevem seus imaginários em circulação?). De fato, eu não estava no nível mais textual das análises de conteúdo ou de discurso desses museus, nem no nível mais amplo das lógicas sistêmicas que estruturam o social. Eu estava desvelando um dispositivo – justamente um nível intermediário entre o que se diz (os discursos) e o que se pensa (as lógicas). Assim, entendo que práticas midiatizadas são a estabilização de certos discursos, mas ainda em um nível em que não chegam a estar instituídas hegemonicamente. Elas se caracterizam, sobretudo, por serem experimentais.
Referências
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizone: Autêntica, 2012.
BRAGA, José Luiz. Interagindo com Foucault – Os arranjos disposicionais e a Comunicação. Questões Transversais – Revista de Epistemologias da Comunicação, Vol. 6, n. 12, jul./dez. 2018.
DE CARLI, Anelise. Entre o visível e o sentido: a comunicação como um pensamento por imagem. Tese (Doutorado em Comunicação). UFRGS, 2020. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/212485.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: Introdução à arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ROSA, A. P. da. Imagens em espiral: da circulação à aderência da sombra. Matrizes, v. 13, n. 2, p. 155-177, 2019. DOI: 10.11606/issn.1982-8160.v13i2p155-177. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/150455.
VERÓN, Eliseo. La semiosis social, 2: ideas, momentos, interpretantes. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós, 2013.
WESCHENFELDER, A. Manifestações da midiatização – transformação dos atores sociais em produção e recepção: o caso Camila Coelho. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação), Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2019. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7970.
Sobre o entrevistador:
Rodrigo Duarte é Publicitário pela Unochapecó (2017), mestre em Ciências da Comunicação pela Unisinos, na linha de pesquisa Midiatização e Processos Sociais (2020), e doutorando pela mesma instituição e linha de pesquisa (2021). Estuda Midiatização, circulação e práticas interacionais.