Em busca dos rastros da midiatização na constituição de celebridades: entrevista com Aline Weschenfelder


Por Rodrigo Duarte, 2022.

No dia 13 de maio de 2016, Camila Coelho publica um vídeo[1] no seu canal no YouTube que parece ser um retrato de como as celebridades dos nossos tempos se articulam: ela, aparentemente em sua casa, faz um relato direto para seus leitores (fãs, seguidores) sobre parte de sua vida e o início da carreira como blogueira. Fato é que vídeos como esse não são nenhuma novidade na plataforma, mas são indícios de uma suposta intimidade entre Camila e aqueles que a seguem. Nesse material, ela conta fatos que aparentemente “todos pediram”, numa versão que, até então, não tinha contado nas entrevistas, matérias e reportagens das quais tenha sido tema principal.

***

O modo como nascem “as estrelas”, ou, celebridades, hoje já não é mais o mesmo. Todo dia novas surgem no Instagram, TikTok, Twitter, YouTube etc. Muito além de uma relação que pretendia ser (ou se imaginava como) unidirecional entre aqueles que ascenderam ao Olimpo Midiático e seus públicos (enquanto multidões reunidas em situação de audiência, em recepção), numa sociedade em processo de midiatização há uma série de processos interacionais que reorganizam as formas de contato entre celebridades e coletivos, num processo complexo, tortuoso, que se dá, dentre outras situações, pelo próprio modo como se constituem esses coletivos; pelo espraiamento da tecnologia digital e pelo processo de circulação, onde aparecem diversos circuitos interacionais específicos.

Isso tudo quem nos conta é Aline Weschenfelder, doutora em Ciências da Comunicação pela Unisinos, na linha de pesquisa Midiatização e Processos Sociais, na tese intitulada: “Manifestações da midiatização transformação dos atores sociais em produção e recepção: o caso Camila Coelho”. Aline é integrante do Lacim e concedeu entrevista sobre o processo de construção de sua tese, a proposta teórico-metodológica de lidar com os estudos de caso como midiatizados, além do desafio da observação da zona de contato entre Camila Coelho e seus interlocutores, materializados em centenas de comentários espalhados nos mais de 500 vídeos de seu canal.

***

Lacim: Aline, para iniciarmos, como foi o seu percurso até chegar no doutorado? Como você construiu esse objeto de pesquisa?

Aline W.: Meu contato primeiro contato com a pesquisa acadêmica se deu na graduação, como bolsista de iniciação científica (2004). Os trabalhos que eu desenvolvia na ocasião estavam diretamente relacionados às operações de sujeitos em recepção, o que não significava deixar de olhar para os processos produtivos, principalmente porque já era possível perceber mudanças, impelidas pela tecnologia, nas atividades comunicacionais envolvendo produção, recepção e os próprios meios. O conhecimento que adquiri na época se tornou um estímulo a observar as transformações da sociedade com a eclosão das redes sociais e o uso que se começou a fazer delas, bem como em relação ao aumento exponencial do contato da recepção com a produção. A construção do meu objeto de pesquisa para o doutorado surgiu nesse contexto.

Meus primeiros contatos com os vídeos de Camila Coelho foram enquanto consumidora, sem nenhuma pretensão de pesquisa. No entanto, ao acompanhar os tutoriais de maquiagem da blogueira no YouTube, percebi que, em um pequeno período, as maneiras de se portar de Camila Coelho, o conteúdo apresentado e elaboração de seus vídeos começaram a mudar significativamente, sem contar com sua aparição em capas de revistas, programas televisivos e peças publicitárias. Ou seja, uma ascensão vertiginosa de sua imagem. Tais mudanças também eram percebidas por outros seguidores, o que era possível verificar através dos inúmeros comentários listados abaixo dos vídeos, algo que me levou a pensar em um processo de circulação discursiva envolvendo Camila Coelho, seus seguidores e os meios de comunicação. Sendo assim, desenvolvi um projeto de pesquisa focando estudar os fluxos e circuitos comunicacionais que resultavam na transformação da então blogueira Camila Coelho em uma celebridade. Durante a pesquisa, ao me aprofundar melhor nos materiais eleitos para análise, percebi que a transformação também afetava seus seguidores, atores significativos na ação observada.


Lacim: Logo no título de sua tese aparece a ideia de “manifestações de midiatização”. Além disso, de um modo geral essa perspectiva de que o processo de midiatização se dá a ver em algumas pistas parece ser central no seu trabalho, na medida que vemos uma reconstituição de vários vestígios da ambiência se articulando no decorrer da pesquisa, até a constituição de Camila enquanto celebridade. Você poderia elaborar um pouco sobre esse modo de olhar para o fenômeno através de suas manifestações?

Aline W: A pesquisa se desenvolve a partir da constatação de transformações, tanto de Camila Coelho como dos atores sociais em recepção, impelidas pelos discursos produzidos por ambas as instâncias, produtiva e receptiva. As marcas discursivas estão nas falas de Camila Coelho, nos seus trejeitos e nos elementos imagéticos que ela apresenta; ao mesmo tempo em que os coletivos que interagem com ela exteriorizam suas marcas através das ferramentas disponibilizadas pela “zona de contato”, a plataforma YouTube, com comentários, curtidas (ou não) e compartilhamentos. Ou seja, para minha tese, busquei na empiria os rastros deixados pela midiatização para realizar a análise. E acredito que seja um caminho mais acessível para compreender o fenômeno, uma vez que ele cada vez mais faz parte do cotidiano e está presente em inúmeros contextos sociais.


Lacim: Na tese, também parecem ser centrais os conceitos de olimpianos/públicos e celebridades/coletivos. Inclusive, na página 24, logo na apresentação do segundo capítulo do trabalho, é esclarecido que “é importante que sejam examinadas as relações entre estes conceitos e os contextos das suas sociedades, visando saber como se tecem as interações que afetam o status da blogueira Camilha Coelho, transformando-a em uma celebridade, bem como o de seus interlocutores, em coletivos (...)”, levando em conta distinções entre o que se vê como uma sociedade dos meios e uma sociedade em processo de midiatização. Que características você viu em sua pesquisa que marcam esses modos distintos de elaboração de celebridades? Também, é possível relacionar a postura de cobrança de coletivos/fãs sobre o posicionamento de figuras públicas com essa nova constituição das celebridades?

Aline W: Os conceitos de olimpianos/públicos e celebridades/coletivos foram importantes para destacar as diferenças, nos modos de constituição de celebridades. Primeiro em uma sociedade onde os meios tiveram papel central para que essas personalidades viessem a despontar, no caso a sociedade dos meios; e o momento atual, da midiatização, em que atores sociais de diferentes campos se apropriam de lógicas midiáticas produzindo variadas estratégias, visando movimentos com atores sociais em recepção, para conquistar notoriedade. Ou seja, a celebridade que emerge da midiatização geralmente tem como ponto de partida um contato mais próximo com o público buscando construir vínculos através das redes sociais digitais, sem a intervenção de instituições midiáticas. Essas conexões também afetam a transformação da recepção, que participa ativamente da constituição da celebridade, sendo que o estreitamento das relações também abre possibilidades para que os coletivos de seguidores e fãs que se consideram fieis e responsáveis pelo sucesso da pessoa, por exemplo, venham a fazer cobranças.


Lacim: A despeito da mudança na configuração entre famosos e públicos, você enfatiza, no seguinte trecho:

Na sociedade dos meios, para existir e se consolidar, o “olimpo” dependia absolutamente do trabalho e da intervenção do mediador profissional – jornalista, publicitário, relações públicas, por exemplo, e de um sistema produtivo específico. Nesse lugar, o papel do público é secundário, quando não mais longínquo. (WESCHENFELDER, 2019, p. 37)

(...)

Diferente da sociedade dos meios, as personalidades que consideramos celebridades, na sociedade em midiatização, resultam de outra construção. Não há dúvidas de que a idealização de olimpianos e celebridades sofrem ingerências das estratégias teco-comerciais-midiáticas, porém, as dinâmicas atribuídas aos atores sociais, emergentes da sociedade em midiatização, dentre outros aspectos, se fazem segundo outro tipo de interação. Nesta ambiência, os públicos não são apenas públicos e não está e nem ficam à espera de que lhes digam como devem agir. (WESCHENFELDER, 2019, p. 38/39)


Nesse sentido, Aline, como você vê hoje o papel dos grandes meios (como a TV, o rádio, as revistas etc.) nesse cenário de articulação entre os coletivos e as celebridades? Para você, eles mantêm alguma característica mediadora nessa constituição de celebridades?

Aline W: Os grandes meios continuam a fazer o que sempre fizeram, a diferença é que hoje expandem seu trabalho para as plataformas digitais. É possível observar que a mídia tradicional colabora com a emergência dessas novas celebridades (que são diferentes daquelas que se estabelecem através da mídia hegemônica, como atores e atrizes de novela) quando já há um reconhecimento expressivo nas redes sociais dando força para que a celebridade da internet rompa as barreiras do digital ascendendo aos “grandes meios”, à mídia tradicional. Na tese, trago como exemplo uma matéria do Fantástico em que é colocada como referência de blogueira Camila Coelho que alcançou o sucesso tão estimado por outras jovens que tentam a mesma carreira. Isto é, o êxito do trabalho de Camila Coelho fez com que a mídia tivesse interesse nela, ela teve sua imagem construída no cenário digital – construindo circuitos comunicacionais junto aos seus coletivos naquele espaço – para somente depois ser reconhecida pela mídia tradicional.


Lacim: Fica claro também na sua tese que, numa sociedade em midiatização, há uma afetação mútua na relação entre as celebridades e os coletivos, além de uma certa dependência da condição de celebridade sobre a sua relação com os seus coletivos, através de um polo relacional (o que você também chama de ‘zona de contato’). O que fica como questão é: no caso da sua tese, quais foram os pontos centrais de constituição desse polo relacional entre Camila Coelho e seus seguidores?

Aline W: A “zona de contato” é o lugar que permite a construção das relações entre produtores e receptores de conteúdos digitais[2], no caso da minha tese destaco o canal de Camila Coelho no YouTube, sobretudo seu espaço de comentários, visto que as ferramentas “curtir”, “não curtir” e “compartilhar” também possuem papel relevante na estruturação de vínculos. Neste lugar observei as trocas entre a blogueira e os coletivos que ali se expressavam destacando pedidos, críticas, elogios, sugestões, comparações entre outras explanações. Por outro lado, Camila Coelho respondia através de novos vídeos aos apelos e questionamentos, mas segundo interesses próprios, visto que constatei no decorrer da análise que comentários negativos foram apagados, bem como alguns vídeos que no decorrer da trajetória da blogueira levantaram questões controvérsias. As relações entre Camila Coelho e seus seguidores foram sendo construídas, bem como desfeitas, a partir de conversações que se desenvolviam conforme a evolução da blogueira. Na medida em a imagem da blogueira alcançava um status maior as relações mais antigas se dissipavam, ao mesmo tempo em que chegavam novos seguidores, os quais se identificavam com esse novo perfil dela. Sendo assim, os pontos centrais da relação entre Camila Coelho e seus seguidores não são estanques, pelo contrário, vão sendo tecidos conforme ela se transforma e sua transformação reverbera no conteúdo que é registrado nos comentários pelos seguidores.


Lacim: As análises dos seus materiais são divididas em três fases, sendo que elas compreendem momentos diferentes do objeto de estudo. Que desafios você teve nessa organização dos materiais e identificação das fases, tendo em vista a dinâmica do objeto?

Aline W: A maior dificuldade foi escolher o que observar entre tantos materiais que se colocavam disponíveis e não correr o risco de dispersão na análise. Optei pelo canal da Camila Coelho no YouTube porque ali identifiquei vários fluxos comunicacionais que se desenvolviam na internet e fora dela, algo possível de verificar tanto através dos vídeos como nos comentários. Por exemplo, quando uma seguidora comentava ter visto Camila Coelho em um comercial de televisão ou numa capa de revista. Esse tipo de registro conduz à circulação da imagem da blogueira, bem como da própria conversação entre os seguidores no espaço de comentários, algo permitido pela interface da plataforma. Além disso, o YouTube enquanto zona de contato, também colocou em evidência marcas da transformação da blogueira e dos coletivos.

Diante disso, busquei inspiração em um modelo do pesquisador argentino Mário Carlón, o Dispositivo Analítico[3]. A proposta do autor se dá em torno da montagem de uma linha do tempo e a possibilidade de dividi-la em fases, o que facilitou e permitiu compreender como se organizou a trajetória do caso estudado. Neste sentido, a divisão de fases não foi exatamente um desafio, mas uma boa operação metodológica para a pesquisa. Por outro lado, mesmo com o esquema observacional sistematizado ainda havia a não linearidade temporal nos comentários. Uma vez que é possível comentar nos vídeos em diferentes épocas, a temporalidade do vídeo entrava em conflito com a atemporalidade do comentário. Em outros termos, a linha do tempo não servia para os comentários, apenas para o vídeo, então se colocou o desafio. Num primeiro momento isso me pareceu um problema, mas no decorrer da análise percebi que se tratava de uma característica do objeto tal complexificação nas interações elaboradas naqueles espaços. Entender isso também contribui para responder sobre as condições e operações em que se desenvolviam as atividades interacional que a pesquisa buscou dar conta.


Lacim: A sua tese elabora uma distinção entre casos de pesquisas midiáticos e casos de pesquisas midiatizados. Como você define, sinteticamente, um caso de pesquisa midiatizado? E como essa proposição teórico-metodológica auxiliou a observação e análise dos seus materiais?

Aline W: Respondendo de modo muito sintético, cito um trecho de artigo que escrevi especificamente sobre o que entendo por caso midiatizado. É aquele que “exige operações específicas e relativas as suas características, pois sua organização parte de uma dinâmica interacional ainda mais complexificada do que aquela do “caso midiático”. Isto ocorre porque na conjuntura da midiatização todos os envolvidos são colocados em evidência – meios, instituições, atores individuais e coletivos”[4]. A proposta de caso midiatizado surgiu durante a análise, pois minhas referências metodológicas partiam de estudos de caso, mas não eram suficientes para dar conta do objeto que se apresentava. Sendo assim, procurei fazer adaptações que envolviam tanto o conceito de estudo de caso midiático tradicional como com os modelos metodológicos que examinavam os fenômenos da midiatização. Tanto auxiliou na observação dos materiais como contribuiu para uma melhor percepção acerca do fenômeno da midiatização.


Lacim: Nas conclusões da tese, você deixa algumas pistas sobre a necessidade de se debruçar sobre novas observações e formular novas hipóteses sobre os elementos de um caso midiatizado, bem como de sua própria natureza. De que forma você tem encarado essas questões e quais os principais desafios você vê no estudo de casos midiatizados?

Aline W: Como o que caracteriza um caso midiatizado está diretamente relacionado aos modos de como ele se origina, de estar na própria ambiência da midiatização e envolver instituições e atores sociais diversos, significa dizer que cada vez mais esse tipo de caso vem se configurando nos estudos comunicacionais. Acredito que o desafio esteja em conseguir identificar as particularidades de cada caso, como ele se desenvolve e se manifesta. Para tanto, serão necessárias táticas operacionais especificas, segundo a imposição de cada observável e objeto, de acordo com o problema e objetivos da pesquisa.



Referências:

WESCHENFELDER, Aline. Cenários e conceitos: dos olimpianos/públicos às celebridades/coletivos. In: WESCHENFELDER, Aline. Manifestações da midiatização transformação dos atores sociais em produção e recepção: o caso Camila Coelho. 2019. Tese (Doutorado em Ciência da Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2019. Disponível em: <http://repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISINOS/7970/Aline%20Weschenfe lder_.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 15 de out. 2021.


[1] Vídeo disponível no link a seguir: <https://www.youtube.com/watch?v=wcb-zVNnXo8&t=61s>. Acesso em 24 de out. de 2021.

[2] FAUSTO NETO, Antônio e SGORLA, Fabiane. Zona em construção: acesso e mobilidade da recepção na ambiência jornalística. Trabalho apresentado Trabalho apresentado no “GT Recepção: processos de interpretação, uso e consumo midiáticos” do XXII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013.

[3] CARLÓN, Mario. La cultura mediática contemporânea: otro motor, otra combustión (segunda apropriacion de la Teoría de la Comunicación de Eliseo Verón: la dimensión espacial). In: CASTRO, Paulo César (org.). A circulação discursiva: entre produção e reconhecimento. Maceió: EDUFAL, 2017. p. 25-48.

[4] WESCHENFELDER, Aline. Estudo de caso midiatizado: estratégia metodológica em pesquisas no contexto da midiatização. Trabalho apresentado ao IV Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais. PPGCC-Unisinos. São Leopoldo, RS. Disponível em https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-artigos/article/view/1354/1255 Acesso em 17 de fev./2022.


Sobre o entrevistador:

Rodrigo Duarte é Publicitário pela Unochapecó (2017), mestre em Ciências da Comunicação pela Unisinos, na linha de pesquisa Midiatização e Processos Sociais (2020), e doutorando pela mesma instituição e linha de pesquisa (2021). Estuda Midiatização, circulação e práticas interacionais.