Os diversos processos presentes na midiatização da saúde

Parte I


Por Maria do Carmo Pasquali Falchi, 2022.


Uma das características da sociedade em vias de midiatização é a intersecção entre comunicação e as mais diferentes áreas do conhecimento, como política, esporte, religião e saúde. É justamente nessa interface entre processos comunicacionais e saúde que minha tese, vinculada à Linha de Midiatização e Processos Sociais do PPG em Ciências da Comunicação da Unisinos, e ao Lacim, está sendo desenvolvida, sob a orientação do professor Pedro Gilberto Gomes e com coorientação da professora Ana Paula da Rosa. Minha preocupação inicial é observar e compreender as experiências comunicacionais das pacientes com Síndrome de Turner (ST) e seus familiares no ambiente online. A Síndrome de Turner é uma condição genética causada pela perda total ou parcial de um cromossomo sexual, e pode ocasionar baixa estatura, infertilidade, problemas cardíacos e renais, perda auditiva, osteoporose precoce, transtorno de aprendizagem não verbal entre outros. Ela ocorre em 1 a cada 2500 nascimentos de indivíduos de pessoas do sexo feminino, ou seja, só está presente em mulheres. Por ser uma doença rara – apenas 2% dos fetos chegam ao nascimento – e devido a invisibilidade midiática e médica, pacientes com ST e suas famílias se deslocaram para o espaço da internet para poderem interagir entre si.

Esse cenário ganha novos contornos com a midiatização, porque além da interação, essas meninas e mulheres produzem conteúdo e os colocam em circulação, permitindo que novos sentidos sejam atribuídos à ST e que novas elaborações sobre a doença e sobre si mesmas sejam criadas. Como parte de minha pesquisa, e para entender esse movimento na ambiência online, eu realizei uma série de entrevistas com pacientes com a síndrome e familiares que criam conteúdo sobre a enfermidade para plataformas digitais. Nas próximas semanas você vai poder acompanhar essas entrevistas, e ver os diferentes contornos existentes no processo de midiatização da saúde. Com exceção da última entrevista – que foi feita por e-mail – todas as conversas ocorreram através da plataforma Zoom em 2021. Desde já agradecemos a todas as entrevistas pela colaboração e aceite do convite para fazerem parte desta pesquisa.

A primeira entrevistada é Brooke Gonsalves, uma norte-americana que nasceu com a síndrome. Em 2014, ela criou um canal no YouTube chamado Brooke TV que aborda diversos assuntos: hobbies, viagens, saúde mental e ST. Em seus vídeos ela traz uma abordagem híbrida, misturando aspectos biológicos e experiências pessoais. Atualmente o canal conta com mais de 970 inscritos e mais de 160 mil visualizações.


Lacim: Por que você decidiu criar um canal no YouTube, e falar sobre ST nele?

Brooke: Quando eu comecei meu canal, eu não estava realmente falando sobre ST, eu comecei falando sobre o planejamento do meu casamento, e então, um ano depois de nos casarmos nós estávamos fazendo alguns testes de fertilidade, e eu sabia que queria documentar isso e estava gostando de compartilhar no YouTube. Eu sabia que teria que descobrir como como gostaria de abordar o assunto. Eu não era alguém que tinha compartilhado sobre isso antes, na verdade eu poderia contar nos dedos as pessoas que eu tinha contato fora da minha família, então eu estava definitivamente saindo da minha zona de conforto. Mas eu era muito, muito apaixonada sobre documentar e compartilhar o assunto, então eu impulsionei para abordar esse assunto e falar de onde vinha minha infertilidade, o porquê de nós estarmos fazendo teste de fertilidade naquele momento. E quanto mais dentro do assunto, eu percebi uma grande necessidade de conversação sobre isso acontecendo naquele momento. E meninas e mulheres e mães estavam comentando e entrando em contato e dizendo ‘obrigada, eu tenho isso’, ‘minha filha tem isso, nós recém descobrimos o diagnóstico e assistir aos seus vídeos realmente ajudaram’; e isso meio que solidificou que era alguma coisa para a qual eu queria aumentar a conscientização.


Lacim: E como você sentiu essa troca de objetivos do seu canal? Foi difícil para você?

Brooke: Bom, definitivamente foi uma mudança de mentalidade. Eu tive que lidar com sentimentos sobre as reações das pessoas, e eu também estava aprendendo conforme eu entrava dentro do assunto. Até aquele momento eu estava apenas fazendo pesquisas sobre mim mesma e aprendendo, então eu estava compartilhando ao mesmo tempo que estava aprendendo o que eu estava descobrindo. Eu estava nervosa no início, foi um sentimento estranho ser tão aberta sobre ter a síndrome. Você não pode, a menos que você saiba o que é ST, realmente olhar para mim e pensar que tem algo, que tem algo errado. Então eu sempre tive a opção de contar ou não para as pessoas, de escolher quem eu queria que soubesse. E deixar isso para trás, entrar no assunto: eu vou falar livremente sobre isso. Mudar para um grande público, levou um tempo para me acostumar. Eu acho que as respostas [dos seguidores] realmente me ajudaram, e se tornou algo que eu mudei e que eu me tornei realmente apaixonada. Foi uma jornada para chegar lá, aconteceu com o tempo.


Lacim: Porque você escolheu o YouTube para falar sobre o assunto?

Brooke: Bom, a primeira coisa é que eu já estava compartilhando coisas no YouTube. Mas também, para a ST, o YouTube é a segunda maior ferramenta de pesquisa do mundo. Pessoas usam não só para procurar vídeos engraçados, mas também tem muito de educacional no YouTube. E eu acho que para algo tão raro, tão único, ter o formato audiovisual realmente ajuda as pessoas a terem um melhor entendimento do que apenas um imagem estática ou texto em uma tela. Eu acho que dá um entendimento mais amplo, e permite que você compartilhe de uma maneira mais completa, o que eu realmente aprecio.


Lacim: Aqui no Brasil é raro termos algum tipo de material [para as pacientes ou seus pais], é apenas o que o médico diz e/ou algumas coisas em livros e sites médicos.

Brooke: Sim, e eu acho que esses livros médicos e escutar do médico é ótimo, mas eu realmente acho que escutar da pessoa que tem é sempre umas das maneiras mais valiosas de se aprender algo. Particularmente, algo tão complexo quanto a ST é, em alguns livros as imagens são assustadoras fora de um contexto.


Lacim: Falando sobre o canal, como é o processo de procurar e checar as informações compartilhadas?

Brooke: Então, tipicamente se é alguma coisa que eu estou procurando por conta própria, eu tento ir no Google – para o melhor ou o pior – e ver o que aparece, ver os sites que surgem e ver se o que está escrito é confiável ou não. Eu tenho alguns sites em particular que eu gosto de ir. Então eu tento utilizar esses sites e fazer meu próprio discernimento sobre os resultados trazidos pelo Google. Se é uma história pessoal, por exemplo, compartilhando uma situação pela qual eu estou passando ou eu passei, eu tento ter certeza de que faço o melhor para apresentar os acontecimentos como eles são, ter meus resultados de exames comigo ou anotações ditas pelo médico, para assegurar que eu estou dizendo corretamente e dando contexto. Esses são os dois grandes cenários quando eu estou checando o que eu compartilho e quando eu faço pesquisas.


Lacim: Como você tenta fazer a informação sobre ST mais acessível para os seus seguidores?

Brooke: Começa comigo tendo certeza que eu entendi, então eu primeiro me asseguro que é algo que eu absorvi e que eu sou capaz de entender. Eu tento colocar no contexto de qual seria a real aplicação [daquela informação]. Então, por exemplo, quando eu estava fazendo testes de fertilidade e usando todos aqueles jargões, é dizer o que é, o que faz e o que os números [presentes no exame] representam. Coisas como os guias sobre COVID-19 e toda informação: ter certeza de que eu, particularmente, entendi as dinâmicas do que está acontecendo. E então ajudar a estreitar no que é importante destacar, e colocar em contexto para que possa ser entendido.


Lacim: E você acredita que houve alguma mudança no campo médico através das atividades comunicacionais, como a que você faz? Por que?

Brooke: Eu acho que sim. Não vou dizer que teve um grande impacto. Mas eu acho que educar os outros, que são os pacientes, ensinar eles: ‘você precisa se lutar por você’ e ‘essa é a melhor forma de fazer isso, essa a forma como você se manter informado’... isso influencia a comunicação deles com os médicos, e as vezes isso significa que os médicos vão ter uma melhor educação porque o paciente fez um ótimo trabalho em se manter informado. Eu tive pelo menos um médico que comentou no meu canal e disse ‘obrigada, eu nunca tinha visto um caso assim, eu só aprendi na universidade, obrigada por compartilhar, me ajudar a entender melhor’. E isso é bem encorajador.


Lacim: Você acredita que há um risco de desinformação sobre a ST através do conteúdo compartilhado nas múltiplas plataformas?

Brooke: Sim, absolutamente. Eu acho que tudo o que está na internet, que é complexo [como a ST], há uma chance de que as pessoas vão compartilhar alguma coisa incorreta. E também há chance de que pegue o que você disse e tire do contexto, compartilhando de forma incorreta. Isso é algo que eu tento ser muito cuidadosa, assegurando que eu me isente das responsabilidades, e monitorar os comentários, assim eu vejo o que está acontecendo.


Lacim: Que estratégias comunicacionais você utiliza para promover a interação com os seguidores?

Brooke: O que eu faço, principalmente é comentar de volta para todo mundo que comentou nos meus vídeos. Eu também tenho meu Facebook e Instagram linkados, e eu converso com muitas pessoas por esses canais. E também é onde eu compartilho ‘eu postei um novo vídeo’, então eles sabem que está lá.


Lacim: Você já teve algum comentário desrespeitoso/ negativo? Se sim, como lidou com ele?

Brooke: Sim. A principal coisa a fazer para lidar com eles é lembrar que aquela pessoa não tem todo o contexto que ela precisaria para entender tudo pelo seu ponto de vista, ou quais são suas experiências e perspectivas. Algumas vezes é apenas lembrar que nem todo mundo é informado, então eles podem estar falando a partir da necessidade de ter mais educação. É isso, e relembrar que são apenas pessoas na internet, e não deixar elas te desestabilizarem muito. E ver a diferença entre um comentário maldoso e um que está fazendo uma crítica construtiva.


Lacim: O que você acredita que é necessário para melhorar a interação entre meninas e mulheres com ST e melhorar o acesso às informações sobre a síndrome?

Brooke: Há uma dinâmica particularmente interessante quando tudo que se precisa está online, o que é uma forma única de interação. Eu acho que realmente é tentar ser o mais comunicativo possível e explicar as coisas em profundidade quando é possível, porque às vezes eu sinto que muitas interações podem perder uma explicação completa ou, você sabe, há mais do que o necessário para ser ouvido ou dito que poderia ajudar. Apagando onde a conversa possa acontecer, onde poderia haver um melhor entendimento. E eu acho que compartilhar histórias pessoais pode ajudar, porque você está vendo experiências únicas. Então não é encaixar todo mundo em um padrão, não é ‘todo mundo vai ter isso’. E eu acho que a dinâmica de navegar isso online é ser mais do comunicativo, é ir além do que o que você pensa que é necessário. Até porque muito fica perdido no contexto de escrever ao invés de uma comunicação face a face.


Lacim: E que contribuições o contato e as informações sobre a síndrome podem trazer para a vida das pacientes e suas famílias?

Brooke: Eu acho que comunidade e compreensão são importantes, ter alguém para conversar é valioso, eu não posso nem mensurar, porque é muito necessário. Até mesmo se você não acha que não tem um problema de saúde severo com a ST. Só as pequenas coisas: ser capaz de ter alguém que completamente – ao invés de parcialmente – compreenda é importante para a sua confiança, autoestima, e, honestamente, aceitar essa sua parte e não se sentir excluído. Essa parte é fundamental. Para os pais, eu acho que só escutar as experiências de outras pessoas, você sabe: ‘aconteceu isso e nós lidamos assim, nós fizemos assim, nos sugeriram tentar tal coisa’. Escutar todo mundo, para as pacientes e para os pais, mas só escutar as diferentes experiências, com tudo o que pode acontecer. Eu aprendi muita coisa só escutando histórias de outras pessoas e escutando como elas lidaram com as coisas, e eu amo e acho que é muito importante.


Lacim: Você acredita que a comunicação pode contribuir para acabar com o estigma sobre ST? Por que?

Brooke: Sim. Eu sinto que quanto mais se fala menos as pessoas verão como algo estranho. Teve um vídeo postado por um canal local de notícias sobre a história de uma menina com ST e seus problemas cardíacos. E havia coisas que eu amaria adicionar e ajustar na forma como eles fizeram a cobertura. Mas só o fato de que nunca tinha ouvido falar sobre ST antes, e ouviu agora é poderoso. É poderoso por muitas razões. Poderoso porque as pessoas serão capazes de se conscientizar na próxima vez que alguém disser que tem ST; é poderoso para aqueles que não sabem que ST pode ser algo, para saber quais são os sinais e ter certeza de que não é nada, então eles recebem o diagnóstico, se preciso.


Lacim: Sim, e nos EUA vocês tem canais de notícia que falam sobre isso, mas no Brasil não. Não temos quem fale sobre no mês de conscientização sobre ST e, em países latino-americanos, no dia internacional da ST, que é 28 de agosto. E minha próxima pergunta é relacionada a isso: o que você acha da representação midiática da ST? Como poderia ser diferente?

Brooke: E é aqui que eu entro em um conflito. Há uma representação realmente ruim. E eu sou bem crítica, porque eu sinto que deveriam ser feitas mais pesquisas [antes de falar sobre ST]. Mas eu acho que em geral acaba sendo que muitas coberturas focam em apenas um aspecto ao invés de dar a imagem completa sobre o que é e o que pode vir a ser, e poderia ser feito muito. ST é algo tão grande, e muita coisa fica perdida quando tenta se traduzir para algo compreensível [midiaticamente]. Eu tenho esse problema com alguns vídeos também, mas eu tenho todo o meu canal como contexto. Então há uma pequena diferença quando um canal de notícias faz um pouco de muitas coberturas. Eu acho que as pessoas tentam, mas eu acho que se você não dedica tempo algo sempre vai acabar sendo perdido.


Lacim: Voltando a falar sobre o seu canal. Em 2020 você começou a fazer entrevistas com outras pacientes com ST, por que?

Brooke: Então, eu estava recebendo muitos comentários e mensagens de outras meninas contanto pedaços e fragmentos das histórias delas, e também senti que todo mundo estava animado para escutar outras histórias. Pareceu uma ótima oportunidade, depois de contar tanto da minha história, dar para outras meninas e mulheres a plataforma para contar a delas. E no topo [de tudo isso], sendo mais egoísta, [risadas], eu realmente amo escutar a história de todo mundo, é muito divertido. Eu meio que virei uma coletora delas, porque agora eu estou obsessiva em escutar a história de tudo mundo. E tem muito a se aprender, é sempre uma experiência fantástica falar com todo mundo e ouvir suas histórias, porque agora eu sempre aprendo algo novo.


Lacim: E isso está relacionado com minha próxima pergunta. você acha que as pessoas consideram você uma expert em ST por causa do canal?

Brooke: Eu tenho medo disso, sim, eu acho que as pessoas, em algum nível, começam a me colocar se não como expert, que eu entendo mais que elas, então elas me perguntam coisas super detalhadas, e eu fico ‘oh, eu preciso entender se eu sei como responder isso’. Eu tento mitigar isso, eu tento controlar isso, eu tento assegurar que todo mundo compreenda que eu sou como você, fazendo toda essa pesquisa. mas eu acho que, de alguma forma, as meninas e mulheres que assistem colocam mais pesquisa sobre as minhas costas do que eu provavelmente aprendi. Então eu tento ser cuidadosa, mas eu sinto que é uma armadilha fácil de se cair.


Lacim: Como foi para você falar sobre ST em um espaço público? Algum aspecto negativo ou dilema?

Brooke: O único aspecto negativo foi [que] eu tive algumas pessoas que comentaram, fizeram suposições sobre o que minha saúde física era tal [por causa da ST] e isso foi difícil. Falar em público é interessante, porque eu passei de mal falar sobre o assunto com as pessoas em minha vida pessoal a compartilhar para todo mundo ver. E você se abre para escrutínio, eu entrei sabendo disso e eu tive que falar sobre ST de forma diferente, porque eu tento fazer parecido como uma conversa pessoal de um para um. Realmente não é! E eu tive que ser diligente comigo mesmo sobre com o que eu me sentia ok compartilhando, o que eu não me sentia ok. E saber como lidar com as coisas que surgem: pessoas comentando informações incorretas, pessoas fazendo perguntas médicas intensas que eu não sabia como responder, porque é uma plataforma pública. Então me abriu para um novo fluxo de comunicações, de diferentes formas. E eu tive que compreender como navegar essa [comunicação] síncrona.


Lacim: Como o processo de ter informações sobre ST em plataformas digitais é diferente da época que você foi diagnosticada? Como você sente essa mudança?

Brooke: Oh, meu Deus, é muita informação e informações melhores sendo compartilhadas. Nós entendemos mais agora, e agora tem mais meninas e mulheres compartilhando suas histórias online. Eu queria que alguém estivesse falando sobre isso quando eu estava crescendo porque eu teria amado assistir. E eu acho que essa mudança, em pessoas terem começado a compartilhar, é importante. E a qualidade da informação, a qualidade realmente melhorou, e eu acho que de alguma forma a quantidade [de informação] também. Eu acho muito mais fácil encontrar informação do que era.


Lacim: E para finalizar, tem algo que você queira adicionar?

Brooke: Eu acho que meu objetivo é encorajar outras [pacientes] a compartilharem suas histórias, da forma como elas puderem, não precisa ser um canal no YouTube. Apenas porque todas as nossas histórias são valiosas, todas as nossas histórias são importantes e merecem ser escutadas. Então eu encorajo mais isso.

Na próxima semana a nossa entrevistada será Isabela Ribeiro, uma mulher com Síndrome de Turner, de Brasília, que vem desenvolvendo, desde 2019, um projeto nas plataformas digitais para disseminar informações sobre ST. Não perca a próxima entrevista, com mais uma abordagem sobre midiatização da saúde.

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Sobre a entrevistadora:

Maria do Carmo Falchi é doutoranda em Ciências da Comunicação na Unisinos. Em sua pesquisa, vem investigando as experiências comunicacionais de pacientes com Síndrome de Turner nas plataformas digitais. Como jornalista e pesquisadora seus interesses estão em compreender os processos e dinâmicas da midiatização da saúde.